As coisas podem agir em nós sem estarem ligadas à vontade de alguém
Poucos são os filósofos contemporâneos que exploraram de forma tão sistemática a maneira com que nossa forma de pensar continua a enraizar-se em uma metafísica implícita, que raramente diz seu nome e que, por isto, age de forma muda e forte. Nesse sentido, seus livros participam de um projeto comum paulatinamente desdobrado.
Um destes pressupostos metafísicos maiores é a distinção entre pessoas e coisas, ou seja, entre aquilo que é dotado de dignidade de agentes capazes de deliberação e aquilo que, desprovido de tal dignidade, serve ao uso e usufruto. Ele é o objeto central desse livro agora traduzido.
É rapidamente perceptível que a distinção entre coisas e pessoas aparece a nós como uma distinção de forte cunho moral (nunca tratar pessoas como coisas), mas também psicológico, jurídico, econômico e político.
Há uma espécie de “dispositivo da pessoa”, isso no sentido de um conjunto de práticas e procedimentos que constituem um horizonte de ações possíveis, de modos possíveis de existência baseado no respeito à especificidade da pessoa.
É tendo em vista a desconstituição desse dispositivo e da reflexão sobre suas consequências que Esposito se envolve em uma verdadeira arqueologia dos conceitos de pessoa e coisa. Arqueologia que lhe permite lembrar como “coisa” aparece enquanto aquilo que está a serviço da pessoa, aquilo que pode ser submetida a uma relação de posse em relação à pessoa. Ou seja, ela pressupõe a generalização das relações de posse e de usufruto ligado à propriedade.
Só em uma sociedade de proprietários, sociedade nas quais o estatuto fundamental de membro confunde-se com o estatuto de proprietário, podem existir “coisas”. Nas sociedades onde as “pessoas” são livres, o preço a pagar por tal liberdade é que as “coisas” sejam submetidas à servidão.
Assim, se são Tomás afirmava que a pessoa era o âmbito no qual a razão poderia exercer o domínio de seus próprios atos, como autor dos seus próprios atos, é porque, para nós, as coisas não agem mais, elas são acionadas por nós.
É claro que o ponto que complexifica tal dicotomia é o estatuto do corpo, nem completamente coisa, nem completamente pessoa. Pois há sempre algo de impessoal no corpo, algo que não é completamente próprio à pessoa, mas impróprio.
Por isso talvez seja tão difícil para nós, que naturalizamos a distinção entre pessoa e corpo em uma chave impulsionada pela teologia cristã, pensar o que é um corpo e o que implica, para nós, não exatamente ter um corpo, mas ser também um corpo.
Pensar tais questões, e essa é uma das grandes contribuições de Esposito, nos permite pensar se o verdadeiro conceito de liberdade social não seria a noção de uma sociedade de sujeitos livres, mas antes uma sociedade de sujeitos e de coisas livres. O que pode ser uma sociedade de coisas livres?
Longe de serem instrumentos ou posses, as coisas podem aparecer como o que nos causam e agem em nós sem que sua forma de agência e de causa esteja ligada à vontade de uma pessoa, à deliberação de uma consciência, um pouco como as obras de artes que nos afetam sem que tenhamos que ver, nelas, a expressão da deliberação de uma pessoa.
Elas não são apenas a sedimentação dos circuitos de histórias que a compuseram, mas também a força de seus corpos, de sua matéria, do trajeto de sua própria materialidade, de sua “vida própria”.
Uma sociedade que não submete as coisas a um estatuto subalterno é uma sociedade que aprende a se afastar do estatuto da propriedade e da hierarquia como modelos fundamental de organização e sentido. Ela será capaz de pensar de forma mais adequada, entre outras coisas, seus corpos e a presença política de seus corpos.
Fonte: Folha de São Paulo